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O homem da faca sem ponta: o corno ou traidor era um fantasma!

Traía no gesto e no comportamento algo de sinistro. Vestia-se no estilo boiadeiro. Botas sempre sujas, roupas grossas e um...

Imagem de PublicDomainPictures por Pixabay
Imagem de PublicDomainPictures por Pixabay

Traía no gesto e no comportamento algo de sinistro. Vestia-se no estilo boiadeiro. Botas sempre sujas, roupas grossas e um chapéu que escondia o rosto vincado pelo tempo e queimado pelo sol. Falava pouco, o suficiente para ser entendido. Sempre no começo da noite aparecia na venda do seu Zulmiro, ponto de encontro de trabalhadores na ‘esquina do sangue’. Assim era conhecido entroncamento de duas avenidas onde embates entre ‘racinhas’ provocaram algumas mortes. Ditão e Forquia estavam entre as vítimas. Suspeitava-se que o sinistrão do lusco-fusco tivesse algum envolvimento com as mortes. Nunca se saberia.

Numa bainha puída, preza no cinto largo, também bastante desgastado, trazia uma faca sem ponta. A arma avançava além do abrigo de couro, revelando o desenho incomum. Tinha 25 centímetros ou mais. Não fazia questão alguma de esconder a faca, que ninguém nunca tinha visto fora da bainha. Não era o instrumento que provocava medo, ainda que reforçasse a cisma. Era o seu jeito. De fala mansa, movimentos lentos, discretos, estudados. Havia algo sinistro naquela figura que se ajeitava no canto do balcão todo fim de tarde para tomar rabo de galo. Cachaça tingida levemente com vermouth, diferente do meio a meio do coquetel original.

Bebia duas ou três doses. Observava o jogo de sinuca logo à frente do balcão, os ruídos dos jogadores e alguma discussão sobre futebol e política. Observava calado, olhar cravado no copo  ou perdido em devaneios. O que pensava? Foi assim durante meses. Não se sabia o que fazia, onde morava, de onde vinha. Muito menos suas intenções. A faca sem cabo permanecia como curiosidade de todos e a ponta obtusa sugeria todo tipo de especulações. Talvez tivesse quebrado numa estocada e permanecia dentro de algum corpo. Ninguém se arriscava a perguntar e muito menos trocar um dedo de prosa. Sem margem para qualquer aproximação, o sujeito entrava mudo e saía calado.

De repente não foi mais visto. Sumiu. Desapareceu. Não se ouviu mais falar dele. Nem nos bares próximos. Aumentaram as especulações. Foi morto? Foi preso? Fugiu? Está escondido? Nenhuma tese prosperou por não se validar em alguma prova. O ‘Sinistro’, como já era conhecido, sem que ele nunca soubesse do apelido, se tornou conversa amiúde e recorrente. Era lembrado todo tempo. E se detalhavam seu comportamento, rusticidade, discrição, indumentária e, claro, a faca sem ponta que nunca saiu da bainha, pelo menos para a satisfação (ou medo!) de olhares curiosos. O mistério seria desfeito de forma inacreditável.

O Sinistro havia morrido. Morreu de forma matada, vítima de um acerto de contas entre homens vítimas do amor. Corno e traidor se encontraram na rua e resolveram a pendência na faca. Ambos perderam a vida na troca de estocadas. O caso tinha ocorrido há pelo menos 10 anos, como relatou estranho que passou pela venda do seu Zulmiro meses depois do sumiço do cliente. Identificou a figura pelas descrições a propósito de conversa sem freio, típicas de boteco. Narrativas que verbalizam, constroem e eternizam personagem que transitam por mesas e balcões sem a pretensão de alcançar distinção, mas ganham notoriedade pela forma estranha que se comportam, se vestem ou bebem. Então, Sinistro era um fantasma? Todas as informações convergiam para essa constatação. O que tinha de verdade nessa história? Não se sabe. O tempo foi apagando detalhes daquele episódio na memória de velhos clientes que foram deixando a vida, como o próprio Zulmiro. A venda fechou e com ela a lenda do Sinistro não virou nada. Desapareceu como ele até que um dia, no canto do balcão, alguém notou um sujeito de chapéu, roupas de boiadeiro e uma faca sem ponta na cintura. Rabo de galo no copo e olhar perdido. Talvez seja ele. Um fantasma em vida ou uma vida de fantasma. Talvez todos tenham em alguma medida, algo de sobrenatural. Só não se torna personagem. Ou não se vê como tal. Morrer em vida é o pior dos castigos. Destino que não se quer. Nem se aceita. Viva a lenda!



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