Sim, Você Come Dólar — Entenda Por Que Isso Importa
Talvez você nunca tenha parado para pensar nisso, mas sim: você come dólar todos os dias. Pode soar estranho, até engraçado, mas essa ideia ficou famosa no final de 2024, quando o dólar disparou de R$ 5,70 para quase R$ 6,40 em poucas semanas. Um artista famoso, em meio a discussões acaloradas nas redes sociais, soltou a frase: “Eu não como dólar.” Ele queria dizer que a alta do câmbio não afetava sua vida.
Só que a frase virou meme justamente porque revela o quanto muita gente não entende os impactos reais do dólar no dia a dia. Quando alguém repete ironicamente hoje em dia: “Tudo bem, eu não como dólar”, é quase como rir de si mesmo, porque, na prática, todos somos afetados. Este texto quer explicar direitinho como o dólar afeta você, sua família, seu bolso e sua rotina — mesmo que você nunca tenha comprado um único dólar.
Por Que o Dólar Tem Tanto Peso na Nossa Economia?
Vamos começar pelo básico. Quando o dólar sobe muito, ele pressiona a inflação brasileira (medida pelo IPCA). Cada aumento de 10% no dólar resulta, em média, numa alta de 0,9 ponto percentual na inflação nos meses seguintes. Para você ter ideia, em dezembro de 2024, o dólar disparou cerca de 13%. Isso, sozinho, já “contratou” uma inflação inesperada para os meses seguintes. Ou seja, mesmo que a previsão fosse de 5% para janeiro, o impacto cambial já colocaria a inflação prevista para maio perto de 5,9%.
E por que isso importa? Porque quando a inflação sai do controle, o Banco Central não tem alternativa: precisa subir a taxa Selic. Isso significa juros mais altos, crédito mais caro, menos consumo, menos investimentos, mais desemprego e um custo enorme para o governo (cada ponto percentual a mais na Selic custa R$ 55 bilhões ao ano). Ou seja: a negligência com o câmbio destrói qualquer chance de manter juros baixos e uma economia saudável.

Fonte: Int Findocs (Câmbio x IPCA)
O Gráfico acima ilustra variação entre a taxa de câmbio (Preto) e o IPCA (vermelho). Fica fácil de notar como a variação cambial sempre leva a um efeito no IPCA. A contaminação na alta de preços sempre que ocorre um descontrole cambial, é algo inevitável.
Onde Você Encontra Dólar no Seu Dia a Dia?
Agora vamos traduzir isso para exemplos práticos. Onde exatamente você está “comendo dólar” sem perceber?
✅ Combustíveis:
Gasolina, diesel, gás de cozinha — tudo isso depende dos preços internacionais, cotados em dólar. O Brasil não é autossuficiente: importa parte do que consome e ainda tem projetos da Petrobras custeados em dólar. Não é só porque a Petrobras “quer” que os preços subam; é porque os custos reais sobem. Isso impacta diretamente quem abastece o carro, quem usa transporte público (que também depende de diesel) e quem cozinha em casa. Um aumento no preço do diesel, por exemplo, encarece o transporte rodoviário — e mais de 60% da logística do Brasil é feita por caminhões. Resultado? Produtos mais caros nas prateleiras.
✅ Alimentos:
Aqui é quase literal: você come dólar. Boa parte dos alimentos que consumimos ou é importada (como trigo, arroz, milho, peixes, azeites) ou é exportada, porque produtores preferem vender para fora quando o dólar está alto, buscando margens melhores. Além disso, produzir alimentos no Brasil também depende de insumos dolarizados, como ração, medicamentos e fertilizantes. Ou seja, mesmo produtos locais ficam mais caros quando o dólar dispara. Um simples pão francês, um pacote de macarrão ou um bife no prato carregam o impacto do câmbio.
✅ Tecnologia e Automóveis:
O Brasil quase não produz bens tecnológicos do zero. Smartphones, computadores, eletrodomésticos, peças automotivas — tudo isso envolve componentes importados. Mesmo produtos “fabricados no Brasil” dependem de insumos internacionais. Isso explica por que um carro popular como o HB20 subiu quase 60% de preço entre 2020 e 2025, enquanto a inflação geral no período foi a metade disso. Chips, aço especial, borracha, peças eletrônicas — tudo é afetado pela oscilação cambial.
✅ Medicamentos e Saúde:
Um dos pontos mais sensíveis: o setor de saúde. Muitos medicamentos são integralmente importados ou dependem de insumos farmacêuticos que vêm de fora. Insulina, reagentes, componentes de equipamentos médicos — tudo sofre com a alta do dólar. Isso aumenta a inflação médica, prejudica planos de saúde (muitos já operando no vermelho) e sobrecarrega ainda mais o sistema público, que já enfrenta desafios enormes. O impacto é geral: das farmácias aos hospitais.
Quem Sofre Mais Quando o Dólar Dispara?
Os efeitos da alta do dólar não são sentidos igualmente por todas as classes sociais.
As famílias de baixa renda sofrem de forma desproporcional. Segundo estudo da FGV, em 2022, famílias que ganham até dois salários mínimos comprometiam mais de 40% da renda apenas com alimentação. Quando comida, transporte e energia ficam mais caros, sobra pouco ou nada para o resto. Quer um exemplo simples? Encher um tanque de gasolina de 55 litros hoje custa cerca de R$ 340 — mais de 20% de um salário mínimo. E não adianta tentar escapar: o transporte público também é afetado, porque depende do mesmo combustível.

A classe média sente o impacto de forma significativa, mas um pouco mais distribuída. Como tem uma cesta de consumo mais diversificada, os efeitos aparecem não só na comida e no transporte, mas também nos eletrônicos, nas roupas de marca, nas viagens, nas compras internacionais, nas assinaturas de streaming e nos jogos online — todos dependentes do dólar.
Já as famílias de alta renda não só conseguem absorver o impacto com mais facilidade, como muitas vezes se beneficiam dele. Isso porque têm maior capacidade de poupança e acesso a instrumentos financeiros que protegem contra a alta do dólar: investimentos dolarizados, ações de exportadoras, títulos atrelados ao IPCA. Para essas famílias, a alta cambial pode ser um problema menor ou até uma oportunidade.
Resultado: a alta do dólar aumenta a desigualdade no país. Quem é mais pobre sofre mais; quem é mais rico consegue se proteger — ou até ganhar.
O Papel Político e o Risco de Ignorar o Câmbio
Nenhum governo gosta de enfrentar um dólar descontrolado. Por quê? Porque a consequência imediata é inflação, desemprego e queda de popularidade. Ainda assim, é comum vermos líderes políticos tentando minimizar os efeitos do câmbio, criando narrativas para conter danos. Mas a economia não perdoa: quando o dólar sobe, a pressão social sobe junto.

Por isso, um aviso importante: se você trabalha, poupa e investe de forma inteligente e diversificada, você pode se proteger bem desses choques. Mas atenção: isso não significa que dolarizar 100% do seu patrimônio seja a solução. O câmbio é volátil e, no longo prazo, o excesso de exposição ao dólar pode até te prejudicar. O ideal é equilíbrio.
Estudos recentes mostram que, apesar dos choques, o Brasil está há cinco anos oscilando em uma faixa relativamente estável de câmbio — com picos que geram estresse, mas que depois tendem a se normalizar. Ou seja, tenha dólar na carteira, mas não só dólar.

Fonte: TradingView (Brasil na mesma região de câmbio há 5 anos)
Conclusão: Todos Nós Comemos Dólar
Vivemos em uma economia globalizada. Nenhum país vive isolado, sem importar produtos ou interagir com cadeias globais. Isso significa que todos nós comemos dólar, sim — só que alguns sentem o gosto mais amargo.
O impacto do câmbio recai de forma desigual sobre a sociedade: pesa mais sobre os mais pobres, enquanto os mais ricos conseguem se proteger. E, no fundo, todos sabemos: um governo que perde o controle cambial perde também o controle da narrativa política e social.
Então, da próxima vez que você ouvir alguém dizer: “Eu não como dólar”, lembre-se deste texto. Porque não importa quem você seja: o dólar está no seu prato, no seu tanque, no seu remédio, no seu celular — e, direta ou indiretamente, no seu bolso.
Texto escrito por Lucas Maia Cardoso, Analista CNPI.